Racismo é um assunto complexo que tem impactado comunidades ao redor do mundo. A Lei 7.716/89, conhecida com Lei do Racismo, pune todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. “Quando se aborda o tema do racismo, é possível afirmar que a subjetividade de um ser humano é moldada pelos costumes. Qualquer indivíduo, detentor de direitos, necessita ser amado, reconhecido e valorizado. E, ser alvo de preconceito, resulta em sofrimento. Por isso a importância de trabalhar essas questões para reduzir tal dor entre aqueles que vivenciam essa realidade”, introduz Enia Moura, psicóloga do Instituto C.
Neste artigo, vamos explorar o que é racismo, a origem dele no Brasil, as leis que combatem o racismo no país, recursos disponíveis para educar e combater o racismo sistêmico, e como o Instituto C atua na pauta – através de rodas de conversas, mas também de medidas práticas.
“Dentro do Instituto, a gente entende a importância de falar sobre o racismo estrutural e como esse racismo velado afeta cada um de nós – e a nossa sociedade”, afirma Lualinda Toledo, pedagoga do Polo Centro. Ela ainda acrescenta que as famílias atendidas pela organização já estão consumidas pelo diagnóstico de suas crianças, e que o racismo não é algo que elas compreendam como parte estrutural. “As mães não percebem que elas acessam ou não o direito delas pela cor da pele de seus filhos”, completa. O impacto de todo esse cenário é perverso e, além de atingir os acessos aos direitos, também influencia na saúde mental das famílias. Para mudar tudo isso, é preciso conversar sobre o tema, mas também tomar medidas práticas, como ações antirracistas – que cabem a toda a sociedade.
O que é racismo?
O racismo é a crença de que algumas raças são superiores a outras, resultando em discriminação e tratamento injusto para com as pessoas pertencentes a essas raças. Muitas vezes, o racismo é manifestado através de atitudes preconceituosas, estereótipos negativos e exclusão social. Essa forma de discriminação pode ocorrer em várias esferas da vida, como no ambiente de trabalho, na educação, na saúde e no acesso a serviços básicos.
O racismo pode assumir muitas formas, desde a discriminação explícita até a velada. É importante entender que o racismo não se limita apenas a ações individuais, mas também está enraizado em instituições e estruturas sociais, resultando em desigualdades sistêmicas. Reconhecer e combater o racismo é crucial para criar uma sociedade mais justa e inclusiva para todos.
Para Claudete Marcolino, também psicóloga do Instituto C, o racismo surge frequentemente durante os atendimentos, mas de uma maneira não verbalizada. “Isso ocorre porque não há uma construção de pensamento em relação à estrutura social, dificultando a identificação do racismo pelas famílias, já que não existe uma estrutura formalmente organizada para tal”, explica.
Um dos lugares onde ele aparece é no diagnóstico das crianças. Segundo ela, estatisticamente, está comprovado que crianças negras recebem um diagnóstico com mais atraso do que crianças brancas. “Esse atraso é mais evidente quando se trata de transtornos comportamentais, pois as questões reais do diagnóstico não são consideradas. Em vez disso, é associado ao contexto uma falta de educação e comportamento inadequado, colocando a responsabilidade na mãe negra e atribuindo tudo aos valores estruturais de uma sociedade que já universalizou seus próprios valores”, explica.
E, uma vez que o diagnóstico é atribuído a uma criança negra, o acesso à saúde, ao tratamento e ao acompanhamento é afetado por impactos físicos e sociais relacionados à melanina. O racismo estrutural se reflete na disparidade de diferença entre uma criança branca com diagnóstico e uma criança negra na mesma situação. Portanto, esse também é um impacto significativo na saúde mental das famílias que lidam com o diagnóstico de uma criança. “Assim, podemos começar a perceber o impacto gerado por uma sociedade que apresenta uma estrutura marcada por um racismo sistêmico e estrutural, os quais dificultam o acesso a diversos recursos. Este é um cenário concreto enfrentado por muitas famílias, que frequentemente não conseguem identificar ou nomear as situações como sendo racistas, nem reconhecer que estão sendo vítimas de violações de direitos decorrentes do racismo”, reflete Claudete.
Origem do racismo no Brasil
No Brasil, o racismo tem raízes profundas que remontam ao período colonial, quando milhões de africanos foram trazidos à força para trabalhar como escravos. Essa exploração e desumanização das pessoas de ascendência africana criou uma hierarquia racial que ainda permeia a sociedade brasileira. Mesmo após a abolição da escravidão, a discriminação racial persistiu de diversas formas, afetando a vida e as oportunidades das pessoas negras no país.
O mito da democracia racial, que sustenta a ideia de que no Brasil não há racismo e que todas as raças convivem em harmonia, tem sido desmascarado ao longo dos anos. A realidade é que o racismo estrutural e institucionalizado continua a impactar negativamente a vida das pessoas negras no Brasil, limitando seu acesso a oportunidades e recursos. Entender a origem do racismo no país é fundamental para promover ações eficazes de combate a essa realidade.
Claudete também reforça outros dois pontos importantes que o racismo atravessa: a solidão e o luto. É visível a falta de rede de apoio e sobrecarga enfrentada por mães negras solteiras, localizadas em regiões periféricas e em condições de vulnerabilidade. Em relação ao luto, também há uma diferenciação para com as mães negras, que não têm o “luxo” de se permitirem o tempo necessário para elaborar a perda de seus filhos, sendo pressionadas a prosseguir imediatamente na luta diária. Isso tudo, lembrando que, cerca de 85% das famílias atendidas no Instituto C são lideradas por mulheres negras, muitas das quais não se reconhecem como negras, destacando a influência também do padrão narcísico de beleza e a não-visibilidade da mulher negra na saúde humana.
“Daí, a equipe multidisciplinar reconhece a necessidade de abordar temas que ampliem o pensamento das famílias, capacitando-as a protagonizarem suas próprias vidas com autonomia e independência. Esse processo possibilita que as famílias avaliem, reconheçam e nomeiem suas dores internas e sociais, contribuindo para o fortalecimento da autonomia e independência”, pontua Claudete.
Leis que combatem o racismo no Brasil
No Brasil, existem leis específicas que visam combater o racismo e promover a igualdade racial. A Constituição Federal de 1988 estabelece a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a proteção contra a discriminação racial. Além disso, a Lei nº 7.716/1989 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, tornando puníveis as práticas discriminatórias.
O Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela Lei nº 12.288/2010, estabelece políticas de promoção da igualdade racial e combate à discriminação, além de criar mecanismos de reparação para as vítimas de racismo. Essas leis representam avanços importantes na luta contra o racismo, mas é fundamental que sejam efetivamente aplicadas e que haja um trabalho contínuo de conscientização e educação para combater essa realidade.
Entretanto, a conquista efetiva dos direitos contra o racismo talvez demande muitos anos. Apesar da presença das leis, como expresso na Constituição, que proclama a igualdade, ainda há um longo caminho a percorrer. “Embora o racismo seja considerado crime, a batalha atual se dá para a efetivação das medidas legais para combater esse delito. É preciso renunciar aos padrões educacionais e estruturais tradicionais em prol de uma educação antirracista. E, para isso, é necessária uma mudança de perspectiva e uma revolução nos padrões de beleza e estrutura estabelecidos”, ressalta Claudete.
Vale lembrar que o racismo é uma forma de discriminação que se baseia em diferenças raciais, promovendo a inferiorização de um grupo étnico; o preconceito é um juízo prévio e desfavorável sobre algo ou alguém sem conhecimento adequado, e que pode ser relacionado a diversas características, incluindo raça, gênero, religião, entre outros. Já a injúria racial é uma ofensa direcionada à raça, cor, etnia, religião ou origem de alguém. Atualmente, no Brasil, o racismo é considerado crime inafiançável e imprescritível, conforme a Constituição Federal. A prática de discriminação racial, injúria racial e preconceito são consideradas infrações penais
Rodas de conversa sobre o racismo
No início de todo ano, a equipe do Instituto C se reúne para pensar nos temas das rodas de conversas dos meses seguintes. “Pensamos em temas que dialoguem com aquilo que vamos percebendo ao longo do ano anterior. A violência contra a mulher, o não acesso das pessoas com deficiência e a questão racial, por exemplo, são questões urgentes”, explica Lualinda.
A questão racial, no entanto, é ainda mais gritante. “A gente percebe isso ao notar que o maior número de famílias atendidas pelo Instituto C é de pessoas negras. Ainda que muitas delas não se declaram negras, por uma questão estrutural, nós enquanto técnicas temos essa consciência de que elas fazem parte de um grupo étnico racial e que elas vivenciam essa questão todos os dias”, diz a pedagoga.
Em outubro, então, aconteceu a roda de conversa sobre racismo – que contou também com uma atividade lúdica sob o comando da artista Raki. “O tema é pesado, né? Então, na primeira parte dessa roda trouxemos as dores e o contexto histórico do racismo no Brasil, para depois finalizar com a atividade artística e temas como representatividade e identidade”, explicou Lualinda.
“Fomos apresentando historicamente às famílias como o racismo se desenvolve, desde os filhos de Noé até a maldição de Cam, e como as religiões utilizam isso para afirmar que o povo negro é amaldiçoado. Abordamos como essa ideia foi empregada para justificar a escravidão do povo negro e como ela contribuiu para naturalizar a concepção de que o negro não possui alma. Relatamos às famílias o percurso de tirar o negro da África, trazê-lo para o Brasil, destacando a persistência das guerras, mas ressaltando que a escravidão tem um caráter perverso, resultando na perda de nossa identidade. Também discutimos a tentativa de embranquecer o Brasil e todo o contexto histórico, visando proporcionar às famílias uma compreensão do passado e, assim, desmistificar o que é ensinado nas escolas”, explicou.
A pedagoga conta que foram momentos de choro e de dor, mas também de reflexão e conhecimento – finalizado com uma série de atividades artísticas.
No Instituto, o trabalho também se desenvolve no sentido de proporcionar uma abordagem clínica ampliada. “Busca-se levar as famílias a compreenderem essa dor não verbalizada, que, apesar de não ser expressa verbalmente, é real e relevante, associada a uma estrutura que coloca essas famílias em situações desconfortáveis, de falta de acesso e violação de direitos”, reforça Claudete.
Medidas e ações antirracistas
É preciso ter essa conversa, mas também adotar práticas que possam mudar esse cenário. “É compreender como denunciar o racismo e entender o funcionamento das leis. É importante também reconhecer que o papel da pessoa branca é tomar partido ao testemunhar situações discriminatórias. É fundamental abordar esse espaço antirracista, reconhecendo que todos nós podemos agir para combater essa problemática. Devemos unir forças para promover mudanças – e de diferentes formas, seja através do voto, da denúncia ou da contratação de pessoas negras”, diz Lualinda.
Muitas das famílias chegam ao Instituto C desconhecendo o racismo e, por isso, naturalizando essa questão. “O pior é quando esse ciclo se perpetua de geração em geração, especialmente se houver a mesma reprodução de cor”, pontua Enia. A psicóloga conta que nos atendimentos das situações provenientes do racismo, é nítida a percepção de desconhecimento dos direitos. “É nosso papel fornecer informações sobre isso, para que a pessoa possa ser mais assertiva nos ambientes em que vive. Promovemos o entendimento sobre o racismo e suas implicações na saúde mental, utilizando uma estratégia chamada acolhimento, que oferece escuta e apoio. Através do diálogo, buscamos modificar a situação que ela está enfrentando para que ela possa sair desse contexto”, afirma.
Em julho deste ano, por exemplo, o Instituto C conquistou o selo Igualdade Racial, promovido pela Secretaria Municipal dos Direitos Humanos. Este reconhece instituições privadas cujo quadro de profissionais contratados contemple, ao menos, 20% de pessoas negras, distribuídas em hierarquias e funções. “Essa sempre foi uma preocupação do Instituto C quanto à equipe nas contratações”, reforçou Vera Oliveira, Diretora Executiva do Instituto C, na época.
Para Lualinda, é fundamental ter pessoas diversas dentro das instituições para que as famílias se reconheçam. “Há demandas que precisam ser abordadas por pessoas específicas, exigindo sensibilidade e compreensão. Quando se trata da relação afetiva e amorosa de uma mulher negra, se uma profissional branca não reconhece historicamente o lugar dessa mulher na sociedade e a experiência da solidão, ela não pode orientar adequadamente essa família, uma vez que o afeto é o único espaço de conexão que essa mulher conhece”, pontua.
Não se trata de classificar quem está sofrendo menos ou mais, mas sim de direcionar políticas públicas para compreender o contexto do racismo estrutural. “Isso envolve diálogo, estudo e a compreensão. Não é sobre virar inimigo do outro, é sobre o outro entender o seu lugar, nós entendermos o que acontece à nossa volta – e o que se faz com isso. Essa é a questão”, finaliza Lualinda.
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