Direitos

Julho das Pretas: vamos falar sobre políticas públicas para as mulheres negras?

Para além de uma data comemorativa, o mês de julho marca a potência das mulheres negras e a necessidade de tê-las nos espaços de reconhecimento. O “Julho das Pretas” é uma iniciativa do Instituto Odara que surgiu em 2013 com o objetivo de fortalecer as pautas que permeiam o mês de julho, quando se comemora o Dia da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, no dia 25.

“É uma data instituída pela ONU para reforçar e valorizar a luta e a resistência das mulheres negras na região. Também é o dia da mulher negra brasileira e é o dia em que a gente comemora a Tereza de Benguela, que é um símbolo de resistência quilombola para a nossa sobrevivência”, explica a conselheira do Instituto C e especialista em direitos humanos Marina Fanciulli.

O Julho das Pretas vem para fortalecer as pautas das mulheres negras para além da data comemorativa e, neste ano, tem como objetivo uma agenda que prepare para a 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras, que acontecerá em novembro. No trabalho do Instituto C, temos a maioria das famílias atendidas chefiadas por mulheres negras, por isso entendemos a importância de falar sobre políticas públicas e espaços de decisão que elas precisam estar. 

A luta por políticas públicas 

Há anos, as mulheres negras lutam para ter voz nas decisões políticas que afetam diretamente suas vidas, e a consciência política é uma das maiores ferramentas para garantir seus direitos enquanto cidadãs. Os movimentos coletivos são o que alavancam ainda mais esse processo, como o Mulheres Negras Decidem que busca, por meio da articulação política, empoderar as mulheres. 

Tainah Pereira é formada em relações internacionais, doutoranda em em economia política internacional e faz parte do coletivo. Ela reforça que é importante saber como conversar sobre política com mulheres de diferentes realidades. “Muitas vezes não existe uma resistência dessas mulheres em falar de questões de gênero e de raça. O que existe é uma falta de familiaridade com os termos que a gente usa ou uma compreensão diferente sobre o que deveria ou não ser prioridade”, explica. 

Aqui no Instituto C, também entendemos que o diálogo é a melhor forma de direcionar as famílias na garantia de direitos e conscientização, por isso realizamos grupos de atendimento temáticos onde abordamos esses assuntos. “A gente traz rodas de conversa com as crianças e com os adultos, lembrando o quanto é importante a gente ensinar desde cedo quais são os seus direitos, quais são os seus deveres, o que não é uma brincadeira, o que é uma ofensa e como que lida com isso”, explica Suellen Claudino, psicóloga do Instituto C.

Sendo uma mulher negra, Suellen também enxerga essas discussões nos atendimentos com mais cuidado, e reflete sobre os momentos de troca que tem com elas. “Eu acho muito especial o semblante das mulheres conforme elas chegam. Elas trazem as demandas e muitas vezes o que elas tomam como normal está muito longe de ser normal. E ser essa ponte de articulação é muito incrível”, conta.

Representatividade nos espaços

Apesar das mulheres negras serem a maior parte da população do Brasil, representando 28%, elas ainda são a minoria em números nos espaços de decisão. A representatividade ainda está muito longe de ser uma realidade, já que as mulheres negras também são as que menos conseguem acesso aos trabalhos formais e a geração de renda para sustentar suas famílias e são a maior parte das mães solo, como lembra a nossa conselheira Marina.

Mesmo a passos curtos, já vemos alguns avanços na política com mulheres negras em lugares de destaque, como a deputada Érika Hilton. Tainah, do Mulheres Negras Decidem, considera que a qualidade das representantes na política já melhorou bastante: “em termos quantitativos, os avanços ainda não foram tão significativos, mas em termos de qualidade, realmente houve uma transformação radical”.

Não somente na política, a representatividade também é necessária nos espaços de acolhimento para as mulheres negras. A Suellen fala sobre a experiência de trabalhar como uma referência de escuta e acolhimento, e diz que consegue ver na prática a importância desse trabalho.

“Elas vêm atravessando múltiplas violências, principalmente a exclusão social. E eu entendo hoje que o meu papel vai além do atendimento direto. Muitas vezes é propor reflexão, propor esse fortalecimento com a rede ou apresentar os serviços”.

 

O trabalho do Instituto C como rede de apoio

A psicóloga Suellen trabalha no Polo Zona Norte, região onde mora e atende as famílias que vivem nos bairros próximos. Com esse contato no dia a dia, ela se vê no papel de articular e divulgar informações importantes para as mães atendidas. “Eu acredito que como uma mulher negra atuando aqui no Instituto C, consigo me perceber diariamente como articuladora. Não só para apresentar serviços e assuntos pontuais, mas principalmente essa questão de mostrar o acesso a direitos, que por muitos e muitos anos foram negados”, reflete.

“Muitas vezes eu acabo sendo essa ponte entre essas mulheres e os espaços”.

A representante do Mulheres Negras Decidem também considera que o trabalho coletivo entre instituições é essencial para preencher lacunas não alcançadas pelo poder público. Considerando a dificuldade do estado de alcançar boa parte desse segmento social, que é os mais vulnerabilizados, ela pontua que as organizações não governamentais cumprem um papel fundamental de acolhimento, orientação, e encaminhamento para diversos serviços, desde questões de saúde até questões jurídicas.

Aqui no instituto, a garantia de direitos é uma questão muito trabalhada com as famílias, pois sabemos que essa é uma ferramenta muito potente para que elas tenham autonomia. E é dessa forma que a nossa conselheira Marina também enxerga: “a importância do trabalho de instituições como o Instituto C para a proteção dos direitos das mulheres negras no Brasil é fundamental para que a gente possa acessar os nossos direitos básicos, considerando todo o contexto de desigualdade que tem, sim, cor e gênero envolvidos”.

Direitos

35 anos do ECA: o estatuto que norteia o nosso cuidado com as crianças e adolescentes

O direito das crianças e dos adolescentes é o que garante uma sociedade mais justa e que promova o crescimento de todas as pessoas sem que haja qualquer dano para elas. Na prática, ainda estamos caminhando para alcançar esse ideal, mas muitas coisas mudaram ao longo dos anos para garantir mais qualidade de vida para os pequenos – como a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, em 1990, há exatos 35 anos. 

O ECA é uma ferramenta muito importante para a garantia de direitos, assegurando que crianças e adolescentes tenham acesso à saúde, educação, lazer e também que eles estejam protegidos contra a violência, além de outras atribuições. Durante os anos, o estatuto tem mudado, de acordo com as necessidades de cada época, por isso a sociedade deve estar atenta para que os direitos sejam respeitados e protegidos. 

Entre as atribuições do ECA, está a responsabilidade coletiva de garantir os direitos das crianças. Começa no núcleo familiar, com o dever de garantir o cuidado, afeto, proteção e desenvolvimento, passa pela escola e o Estado, que precisam assegurar o acesso à educação de qualidade e à saúde, e também relaciona a sociedade em geral, que tem a responsabilidade de olhar com atenção e respeitar as crianças e os adolescentes. 

O ECA também é importante para que os adultos do futuro possam ser cidadãos conscientes do papel deles na sociedade, como reforça Armando Hussid, conselheiro de direito e presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA/SP): “a proteção e cuidados com nossas crianças e adolescentes são essenciais para que eles possam futuramente participar da sociedade de maneira plena”.

O que mudou com o ECA?

A promulgação do Estatuto foi muito importante para que a sociedade passasse a enxergar crianças e adolescentes com mais foco em proteger a integridade deles. “Antes do ECA, o Código de Menores, vigente durante a ditadura militar, via os ‘menores’ como ‘situação irregular’ e focava em punição, não em proteção”, explica Armando.

Desde então, houve avanços como o fortalecimento do Conselho Tutelar, ampliação do acesso à educação e à primeira infância, programas de transferência de renda e maior articulação da sociedade civil em prol da infância. Mas ainda caminhamos para que ele seja efetivamente aplicado. 

Por isso o Estatuto está sempre em constante desenvolvimento e se adequando para que os direitos das crianças e adolescentes estejam de acordo com as mudanças na sociedade. Para ilustrar, separamos aqui algumas das alterações mais recentes que são importantes para nós enquanto cidadãos: 

Comunicação obrigatória do desaparecimento: em 2024, uma das alterações leva em consideração a responsabilidade dos cuidadores com a segurança das crianças, e incluiu uma penalidade para pais, mães ou responsáveis legais que, de forma dolosa, deixarem de comunicar à autoridade pública o desaparecimento de uma criança ou adolescente. 

Segurança em espaços educativos: outra alteração, também do ano passado, diz respeito aos estabelecimentos educacionais e similares que desenvolvam atividades com crianças e adolescentes. Esses lugares deverão manter fichas cadastrais e certidões de antecedentes criminais atualizadas de todos os colaboradores.

Atenção às vítimas de violência: ainda no mesmo ano, um item foi incluído na seção das linhas de política de atendimento, prevendo serviços de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão e às crianças e aos adolescentes que tiverem qualquer dos pais ou responsáveis vitimado por grave violência ou preso em regime fechado.

Essas são algumas das mudanças que nos ajudam a atuar como agentes de promoção do bem-estar de crianças e adolescentes, e o ECA é o pontapé inicial e norteador dessa proteção.

Uma responsabilidade coletiva

Organizações da sociedade civil como o Instituto C atuam com um papel fundamental na promoção dos direitos previstos no ECA. Aqui, por meio dos nossos atendimentos e atividades nas áreas da assistência, educação, psicossocial e nutrição, temos o papel preventivo e pró-ativo na garantia de direitos, com o objetivo de que as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social consigam crescer sem que seus direitos sejam violados. 

De acordo com Lucas Pisciotta, assistente social do Instituto C, “o terceiro setor é uma ponte fundamental entre políticas públicas e a população, principalmente em territórios onde o acesso a direitos é historicamente negado ou fragilizado. Atuamos de forma complementar ao Estado, sendo muitas vezes o primeiro espaço de escuta, acolhimento e fortalecimento de vínculos”. 

Com a nossa equipe multidisciplinar, entendemos que a família é a base para um crescimento saudável, por isso atuamos com todos os membros para que eles entendam a importância de olhar com mais cuidado para a infância. Essa articulação em rede é importante para que a sociedade consiga, também, fiscalizar onde o poder público não tem uma  atuação tão ativa. 

O presidente do CMDCA, Armando Hussid, ainda reforça que nós, enquanto sociedade, não podemos pensar que os direitos têm a ver com, apenas, a proteção contra violações, mas também a garantia de condições para que as Crianças e Adolescentes possam se desenvolver de forma plena, para que possam, também, exercer seus próprios direitos.

O ECA no dia a dia da assistência social 

O ECA veio para reconhecer as crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos e estabelecer a proteção integral como um pilar indispensável. “No Instituto C, promovemos momentos de leitura e discussão do ECA com os próprios jovens, permitindo que conheçam seus direitos e deveres, ampliando a consciência crítica e a cidadania desde cedo. É uma ferramenta de empoderamento e transformação social”, explica Lucas.

“O ECA reforça nosso papel como articuladores da rede, como escuta qualificada e como defensores da dignidade humana”.

 

O estatuto orienta todas as etapas do nosso trabalho, desde o primeiro acolhimento até a articulação com a rede. Cada atendimento, visita domiciliar, diálogo com escola ou CRAS, é atravessado por esse compromisso. Ele não é só um documento legal, é uma ferramenta potente que usamos na nossa prática cotidiana.